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23 maio, 2011

Há, então, que desempenhar a vida em vez de vivê-la. Esse sentimento, muito contemporâneo, já foi descrito, com competência, por sociólogos, filósofos, psicanalistas. Mas só um romance, um estupendo romance como Benjamin, pode dar vida a ele. Lendo o romance de Chico Buarque, não precisamos explicá-lo, ou defini-lo; nós o sentimos na pele e, o mais doloroso, sentimos o quanto cada um de nós, seus leitores, também manobramos discretas câmeras interiores, ainda que sem perceber isso. No mundo da imagem, todos estamos engolfados pela visão. “Eu vi” é a frase que corresponde, por excelência, à felicidade moderna. Vi um filme, vi uma peça, vi um jogo de futebol, vi um assassinato, vi uma batida de carro, vi uma briga, um suicídio. Somos todos espectadores, o mundo se converteu numa platéia. E as imagem nos governam, são os deuses contemporâneos”. P. 76

José Castello, O Carrossel luminoso, em Chico Buarque do Brasil, 2004

Você conhece o 7?

20 abril, 2011

“O 7 é (http://setefotografia.wordpress.com)  um encontro amoroso entre pessoas que fazem da fotografia a sua maneira de estar no mundo e que procuram não dissociar o trabalho do afeto. É olho, mente e coração, como já nos disse o Cartier-Bresson, para a arte e para a vida, tudo misturado. É um blog de fotografia, sobre fotografia e para a fotografia, cuja proposta é ser um lugar de partida e de chegada, um lugar de troca, independente de fronteiras. Um caminho para nossas experiências estéticas, pesquisas, inquietações, questionamentos, angústias, descobertas, reflexões e diferenças”. Vai lá ver quem somos!

Diálogo #003 do 7fotografia – Fotografia? Fotografia! Fotografia.* **

20 abril, 2011

Leia o texto completo publicado no blog do 7.

Olho da Rua, fotografia de Joana Pires***

Falar da nossa relação com as imagens é correr o risco de percorrer um caminho repetitivo que, de tão intuitivo e natural, pode parecer óbvio, mas esconde nuances nunca totalmente debatidas. Criamos imagens até quando usamos a imaginação. Criamos imagens para dar conta da nossa vontade de conhecer mais, de compreender mais, são elas que facilitam o nosso contato com o que está à nossa volta. Elas existem desde que o homem existe, desde que o homem, consumido e impregnado por tudo o que vê, se preocupou em também inserir no mundo um pouco de ‘como’ ele via. Com a invenção da fotografia, a produção de imagens se tornou mecânica e entrou, com a ajuda de uma máquina, pela primeira vez, na vida cotidiana, a vida do homem comum. Desde então, nossa produção imagética mantém uma relação muito íntima com a tecnologia.

Pensar as definições e limites do próprio conceito de fotografia sempre gerou polêmicas. Se conceituar nunca foi atitude fácil, a coisa se complicou quando o formato digital passou a massivamente tentar agregar toda a nossa produção cultural que, agora digitalizada, virou código numérico, display eletrônico. A imagem fotográfica (ou algo muito semelhante) não depende mais sequer do aparelho, podendo ser completa simulação, manipulação de pixels. Então, como chamar a fotografia que tem sua estrutura completamente modificada mesmo após o “instante decisivo” (pra brincar com essas nossas repetições)? Como chamar a fotografia que se comunica através da narrativa produzida pelo movimento, a fotografia que é quase filme, como o stopmotion, ou o filme que é quase fotografia?

Me pergunto isso já há um tempo, mas sinto as dúvidas se intensificarem e serem provocadas diante de episódios como o de Michael Wolf, fotógrafo alemão que recebeu menção honrosa no World Press Photo com uma série de fotografias tiradas a partir do Google Street View [link]. Não despertam minha atenção as questões políticas apontadas por algumas opiniões de internautas que sugerem interesse do WPP em divulgação. Fico mesmo impressionada pelo grande debate ontológico que essa escolha provocou – e olha que nem me sinto tão confortável diante de debates ontológicos.

Image #17 de "a series of unfortunate events", trabalho de Michael Wolf

Mas a recorrência de comentários indignados diante das fotos partiu, de forma geral, do questionamento de três idéias básicas:
– tirar fotos de fotografias produzidas por um recurso tecnológico é fotografar?
– essas fotografias são de autoria de quem: do fotógrafo ou do Google?
– o que legitimaria o enquadramento dessas imagens como fotojornalismo?

Todas as questões são polêmicas e dariam um artigo cada (conto com vocês). Mas alguns pontos gerais podem ser tratados para dar início a essa conversa.

A última questão – que me parece um tanto complexa já que pouco trabalhei e pesquisei o fotojornalismo – vai direto a um incômodo bem comum na atividade do fotógrafo: essa coisa da categoria. O que caracteriza cada uma das ramificações da imagem fotográfica que inventamos e que, cada vez mais, se tornam inutilizáveis. Afinal, o que danado é fotojornalismo?
Se a gente fizer um brainstorm das palavras mais óbvias que vem à nossa mente quando pensamos o que é fotojornalismo – informação, documentação, fatos, denúncia, etc – só me aparecem termos que, em muitos argumentos, poderiam ser associados às imagens produzidas por Michael Wolf.

Mas acho que esse incômodo diante do caráter fotojornalístico se mistura muito à segunda principal questão diante da imagem, a questão da autoria. Muito já se contestou o status de autor na história da arte. E, só para citar, podemos nos referir a Duchamp, Richard Prince, Sherrie Levine (tem um artigo legal aqui sobre os dois últimos) e, mais afeito ao bom português, Vik Muniz que, em entrevista a Luciano Trigo, disse umas coisas muito interessantes sobre apropriação:

A apropriação é uma postura conceitual em relação à cópia, pois questiona a propriedade intelectual do objeto ou da imagem. No meu trabalho, eu jamais questiono a importância ou o mérito da fonte. Minha função remete o público diretamente na direção do original. A minha preocupação não é com a autoria e sim com a evolução dos rituais visuais.

Vik segue dizendo que ele não se apropria, ele copia mesmo. É diferente. Ele faz, por exemplo, uma cópia em chocolate de uma imagem visualmente explorada por nossa sociedade. No caso, de Wolf, a apropriação é mais óbvia. Apesar de não tirar o “print screen” do computador, ele faz uma cópia fotográfica das imagens – e qual fotografia pode se dar ao luxo de dizer que não é cópia, não é mesmo?

A questão assustadora é que poucas vezes o fotojornalismo brincou e provocou tanta vertigem diante da questão da autoria como essa série de Wolf. Principalmente depois de tanta celeuma histórica pelo reconhecimento do direito de autor de todo fotojornalista.

Muita gente utiliza o mesmo argumento tantas vezes usado diante da arte abstrata: brincadeira de criança. Mas é isso que diferencia pessoas comuns de pessoas inovadoras: as idéias das últimas questionam fronteiras, não importa se causam repulsa ou aplauso, o que importa é que causam debate.

Muita coisa a se pensar. Me apeguei mesmo foi ao aspecto das fotografias em si. As fotos de Wolf tem ruídos, aliás, são embasadas em ruídos – cursores de mouse à mostra, falta de nitidez, cortes bruscos, distorções de cor, etc. Acho que a série de Wolf tem força, mas fico pensando se tem a mesma força como fotos individuais.

Acredito que qualquer produção de conteúdo é legítima, mas nem por isso boa. E quando penso nisso, não me detenho às fotos de “A Series of Unfortunate Events” mas ao prêmio WPP e principalmente à sua foto do ano. Ronaldo Entler, em artigo bem esclarecedor publicado recentemente no blog Icônica, questionou a premiação, questionou a elaboração da imagem, e os critérios para analisá-la como uma boa fotografia. Acabou debatendo um aspecto que é muito curioso e comum: prêmios de fotojornalismo, muitas vezes, privilegiam o fato à foto.

Pensando nesses aspectos todos e ainda com uma opinião superficial sobre o assunto, eu diria que premiar uma fotografia feita a partir de um gerador da imagem é, na verdade, o mais próximo de enaltecimento do ato de fotografar que o WPP chegou este ano. A “photo of the year”, na verdade, merecia mesmo ganhar um prêmio de fatografia.

E aí fico me perguntando, se premiamos a história ao invés da foto, se analisamos uma imagem como janela do mundo, pelo impacto que o fato provoca na sociedade e pelo caráter inusitado do que ele apresenta, será que realmente entendemos e pensamos na fotografia em si?

* Trechos desse texto foram retirados de um artigo que produzi para o mestrado em Comunicação Social, linha de Mídia e Estética da UFPE.
**Agradecemos particularmente a Queiroga por ter-se declarado interessado em ver essa história pensada aqui nessa mesa 7.
*** A foto do post foi produzida com uma D80, a partir de imagem do Google Street View. É uma apropriação da apropriação da apropriação.

Desdobramentos do 7: sobre matrizes e filiais

20 abril, 2011

Fotografia: Joana Pires

Lendo o primeiro post de Ana Lira no blog do 7 (grupo do qual faço parte), me deparei com a sensação de que não tinha percurso mais genético (referente ao termo gênese mesmo) para começar um blog sobre fotografia do que essa coisa da matriz (no caso citado, o filme), cuja integridade e importância Aninha defende com paixão, unhas e dentes. Tenho a sensação de que a gente resolveu partir do início mesmo, do surgimento da técnica e da colisão direta entre a prática fotográfica e o conceito de “original” tão defendido pela arte pré-foto.

Aí, carteirinha de fichamentos que sou, lembrei daquele clássico texto de Benjamin sobre a obra de arte nessa era pós-invenção da fotografia. E me perdoem o academicismo, mas acho um luxo quando estou estudando algum desses livros que espero que sejam chatos pra caramba e o cara vem e fala do mundo assim, como quem entende toda a lógica das coisas.

E aí Benjamin disse, lá por 1950, uma coisa que era assim: A arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu centro a obra original.

E pronto! Há mais de cinquenta anos viu tudo o que ia acontecer na arte ocidental desde os fotógrafos artistas iniciais até, por exemplo, os músicos locais que jogam seus cds na internet sem cobrar nenhum trocado. Todos tentando se centrar menos no culto à originalidade e se preocupando mais com a eficácia da obra em função da reprodutibilidade. É claro que, quando eu digo que ele viu tudo, eu estou generalizando completamente. Mas nem toda generalização é burra.

O caso é que acho que a arte caminhou para um nível tão intenso de contestação de padrões, de modelos que saiu tentando derrubar tudo: a ideia de original, a questão da autoria, até o próprio conceito de arte. E hoje a gente lida com objetos artísticos tão cotidianos, mas tão cotidianos, que é mesmo muito difícil (e às vezes sem propósito) definir limites.

Fiquei pensando em toda essa contestação da originalidade – que me parece ter chegado a uma espécie de auge hoje em dia, com o colapso das indústrias fono e cinematográfica, e a consolidação de práticas como RT, reblog, etc. É mesmo como se a gente não estivesse mais preocupado com as matrizes – mas não apenas na fotografia. Em praticamente todos os aspectos da nossa vida, as matrizes já ficaram em segundo plano. O que conta mesmo é a divulgação da informação (seja ela texto, imagem, áudio, etc.) mesmo que ela não parta exatamente do “ponto de partida”.

E aí só nos resta mesmo uma preocupação inquestionável: o problema da memória. Como garantir a conservação de nosso passado se nossa prática diária supervaloriza o presente, o instantâneo? Como fica a memória se temos cada vez mais coisas pra lembrar e, portanto, cada vez mais o perigo de esquecer?

Não sei. Só sei que o problema não se resume às matrizes analógicas. Vivemos na luta também pela preservação dos nossos arquivos digitais, que muitas vezes morrem com nossos celulares, nossos cartões de memória, nossos HDs, nossos computadores. E esses arquivos estão sendo constantemente produzidos e reproduzidos. A pergunta que fica é: você atualizou o seu back-up hoje?

*Ainda não conhece o 7? Dá uma passadinha lá! http://setefotografia.wordpress.com

Abaporu de Bill Brandt

29 setembro, 2010
Hampstead, London, 1956 fotografia de Bill Brandt

Hampstead, London, fotografia de Bill Brandt, 1956

Alemão de nascimento, William Brandt viveu grande parte de sua história na Inglaterra, sendo, por isso, reconhecido como um dos fotógrafos ingleses mais importantes do século XX. A classificação não é exagera, afinal, não se pode esperar pouco de um fotógrafo cuja formação esteve sob a influência direta de Man Ray. Não é à toa que o surrealismo teve forte peso na obra de Brandt, podendo ser mais identificado nos períodos pós-segunda-guerra, quando o artista já apresentava uma linguagem fotográfica mais amadurecida. Ao longo de todos os anos que dedicou à fotografia, Brandt produziu desde imagens documentais, com foco na denúncia social – como o trabalho English at home, em que documentou as rotinas de vida da sociedade inglesa, marcada por desigualdades – a imagens de forte abstracionismo. Todas, no entanto, caracterizadas pela predileção por preto-e-branco.

A fotografia acima (Hampstead, London, 1956) pertence à segunda metade da carreira de Brandt, fase dedicada aos retratos, às paisagens e aos nus. É o tratamento que o fotógrafo dá aos retratos de corpos femininos nus que consagra-o como um artista com uma linguagem bem peculiar. Ela pertence a uma série de retratos fotografados em Hampstead, em Londres, a partir do ano que marcou o fim da II Guerra Mundial e que, por isso, acredita-se fazer referência à celebração da sobrevivência do corpo num período previamente marcado pela destruição.

É bastante curiosa a colocação do corpo feminino na obra de Brandt. Ao contrário da relação com a sensualidade tão largamente explorada, a mulher na obra de Brandt sugere uma espécie de estranhamento, provocada por uma distorção intensa de suas medidas. Sua presença é oferecida ao espectador por meio de uma perspectiva deformada, capturada com lentes grande-angulares e aguçada pelos close-ups.

Em Hampstead, London, essa característica mantém-se e o fotógrafo retrata uma mulher gigantesca que pode até seduzir, mas principalmente inquieta o espectador como um sonho estranho faz. Nessa imagem vertical, em preto-e-branco, a mulher está sentada no chão, com a perna direita dobrada, provavelmente sobre a perna esquerda, que não aparece de forma clara no quadro. A mulher ocupa a parte central da imagem com seu corpo apontando e preenchendo um pouco do lado direito da foto.

Nessa imagem, predomina uma relação entre a luz e a sombra bastante recorrente na obra de Brandt. O fotógrafo aproveita a luz minuciosamente, como sendo o componente que vai permitir ou vetar ao espectador o acesso à mensagem visual. Nota-se, pela recorrência de sombras quase em preto absoluto, que Brandt oferece apenas algumas partes do corpo da mulher para serem observadas. Outras, mais  responsáveis inclusive por sua identidade como mulher – como o rosto ou os seios – são simplesmente escondidas, negadas.

A mulher está sentada no chão, sobre uma espécie de carpete estampado. Mas a distorção provocada pela lente coloca as duas limitações espaciais – chão e parede – quase numa relação de contigüidade vertical. A sensação é de que o solo desliza da parede quase como uma rampa o faz, sem ser de forma brusca, sem provocar rompimentos.

É relevante também destacar a parcela de movimentação que a foto sugere, não apenas pelo ritmo proposto pela relação vertiginosa entre parede e chão, mas principalmente pelo borrão provocado pelo braço da mulher em deslocamento. Isso provoca a impressão de que a mulher não possui braços e talvez nem a outra perna. Algo como uma Vênus de Milo com apenas uma perna, a direita, gigantesca, assustadora, mas intrigante.

Arrisco a propor uma comparação desta imagem com a famosa obra Abaporu (abaixo) de Tarsila do Amaral. Um dos principais trabalhos da pintora, esta obra causou furor no movimento cultural brasileiro da década de 1930. Em entrevista à revista Veja, em 1972, Tarsila afirmou que o quadro causava estranhamento nela mesma, que não sabia de onde havia tirado aquelas formas e proporções. Para a pintora, a figura de perspectiva deformada e quase monstruosa de Abaporu mais parecia uma lembrança psíquica que ela devia guardar inconscientemente, talvez relacionada às empregadas da fazenda de sua família, mulheres corpulentas que contavam histórias e embasavam seus pesadelos de criança.

Abaporu, pintura de Tarsila do Amaral, 1928

A monstruosidade quase abaporesca da mulher na foto de Brandt provoca uma dramaticidade, uma atmosfera de ameaça, como se aquela mulher gigante fosse capaz de oferecer algum perigo ao espectador – qualquer perigo, nem que seja o de esmagamento.  Com sua imponência de monstro, a mulher de Brandt pode não ser identificada exatamente como uma mulher, mas guarda um movimento, uma curva de corpo, linhas que são traços, índices de figura feminina. Somos obrigados a acreditar na existência dela mas confrontados com a ausência de credibilidade que uma imagem tão distorcida possui. Acho que é o mesmo desafio lançado a nós pelos sonhos: emocionantes porque são reais e incríveis porque não são.

tempo de fotografia

25 agosto, 2010

Certa vez, solicitada a escrever uma carta a papai Noel numa dessas redações escolares tão relevantes quanto ‘minhas férias’, pedi, não sem constrangimento pela exposição, que me restituíssem as fotos de minha infância perdidas num episódio de família. Vejam que já daí começa o inusitado do ocorrido. Eu, ainda criança, sentindo falta do registro imagético que me traria memórias de um tempo recém-vivido mas que, não sei por que razão, eu pouco recordava.

Não sei se é daí que me surgiu esse apego à fotografia. De uma crença inocente de que elas guardavam os espaços vagos que sempre senti na dimensão do meu tempo – a capacidade de revelar minha memória. Como as cicatrizes da perna da gente guardam os espaços de carne perdidos nos muros e nas árvores dos nossos caminhos – e a possibilidade de lembrarmos a queda e as aventuras vividas em cada uma. Uma fotografia-que-fosse poderia me levar a me relacionar com os instantes perdidos. Não para revivê-los, mas para saber onde e como aconteci. Meu rosto, minha pele sem marcas.

É fato de pura curiosidade, necessidade simples de ter o arquivo de mim se esse arquivo estiver guardado em algum lugar. Não se trata de uma busca por quem sou hoje, uma vontade de saber as causas das consequências, afinal “passado, futuro, ora, essas coisas não existe. Tudo o que sou e tudo o que vivi está aqui, no presente”, como diz Eugênio Bucci.

Mas creio que a fotografia mantém essa relação quase mágica com a nossa percepção de tempo, principalmente a fotografia dos álbuns de família, sempre condicionada a uma noção de tempo diferente, afetiva, íntima.

Ao falar de uma fotografia específica, de uma pescaria que participou junto com pai, primos e irmãos, Bucci afirma que a fotografia não o leva a viajar no tempo, mas sim, a se relacionar com aquele instante que, apesar de passado, não foi perdido, ao contrário, se mantém presente ao ponto de continuar influenciando-o e sendo influenciado pelo seu olhar.

O tempo se sente? Segundo Bucci, o tempo não se manifesta ao passar, porque ele não passa, é a matéria que se modifica, se desloca num fluxo ininterrupto. Não sentimos o tempo passar, sentimos as coisas passarem com o tempo. E essa sensação nos confunde e nos faz ver o tempo como fluxo contínuo.
Partindo dessa perspectiva apontada por Bucci, posso supor então, que o tempo não passa cronologicamente, como afirmamos com expressões como ‘um dia após o outro’, ou com nossa noção de dia-a-dia. Na verdade, o que vivemos é a vida presentificada, todo dia sendo uma metáfora da única coisa que podemos perceber: o momento presente. Não sentimos o tempo, sentimos essa vida.

O tempo se mede? A questão que se coloca, portanto, é que, admitindo que o tempo não passa, como classificamos sua passagem, criando medidas para o seu fluxo? Creio que a resposta está na afirmação de Bucci de que o tempo como medida é um construto social. Não se mede, mas nós passamos a medi-lo a partir do momento em que virou mercadoria, a partir do momento em que percebemos que tempo, dentro de uma lógica de consumo e produção massiva, também é dinheiro.

O tempo é latente? O tempo, portanto, não pode ser medido, não pode ser sentido mas, é latente, como uma imagem do mundo que se cola na película de um filme. A imagem fotografada se grava na película e fica ali, escondida, até ser revelada, literalmente, durante os processos químicos. O tempo, por sua vez, está em iminência de se manifestar, mas não se manifesta diretamente, absolutamente, independente, se manifesta apenas aos nossos olhos, quando o significamos, quando imprimimos sentido a ele, como fazemos nos nossos álbuns de família.

texto para a cadeira Semiótica da Mídia, com a professora Georgia Quintas

Qual a realidade da imagem hoje?

29 julho, 2010

foto? de Joana Pires

Pergunto por uma sincera dificuldade de me conformar com as definições e limites da própria palavra imagem. A imagem foi meio de expressão cultural e artística durante toda a história humana. Sua produção, por muito tempo foi envolvida em rituais, tradições, muitas vezes associadas a padrões estéticos que ressaltavam o talento nato ou o esforço físico do pintor, escultor, gravurista.

Com a invenção da fotografia, a criação de imagens se mecanizou, tornando-se uma prática simples e acessível a uma parcela bem maior da população. A produção técnica da imagem ganhou repercussão gigantesca e se sobressaiu em quantidade quando comparada às técnicas de criação de imagem já tradicionais.

O impacto da fotografia foi tamanho que fez com ela fosse capaz de, em certa medida, “tomar o lugar” de quase toda a produção de imagens anterior a ela, no momento em que a presença da obra cedeu espaço à sua imagem registrada em película, e as pessoas passaram a ter muito mais contato com a foto do quadro da Mona Lisa do que com a própria Mona Lisa. Por isso, creio ser praticamente impossível falar de imagem na sociedade pós-industrial sem falar, inevitavelmente, de fotografia.

A situação se complica quando o formato digital passa a massivamente tentar agregar toda a nossa produção cultural. É, na verdade, um processo semelhante ao vivenciado pela pintura quando ela precisou ser fotografada para fins de divulgação. Num processo praticamente equivalente, a imagem passa agora a ser digitalizada, virar código numérico, display eletrônico. Mais que isso, não depende mais sequer do aparelho fotográfico, podendo ser completa simulação, manipulação de pixels. Então, como chamar a fotografia que tem sua estrutura gráfica completamente modificada? Como chamar a fotografia que tem seus pixels apagados, substituídos, suavizados, modificados; a fotografia que se comunica através da narrativa produzida pelo movimento, a fotografia que é quase filme, como o stopmotion, ou o filme que é quase fotografia? A fotografia filmada? O filme fragmentado em frames?

Apesar dessa dificuldade, a fotografia é, sim, minha base de referência sempre que menciono a palavra imagem, não por simples predileção pelo formato, mas porque acredito que a fotografia foi a imagem que melhor se adaptou às transformações e novas estratégias impostas pela sociedade contemporânea, cada vez mais repleta de hibridismos entre mundos on e off-line.

27 julho, 2010

“I realize the power of a computer program like Photoshop… but haven’t seen anybody who has taken photography to a different level with it, a different place, the way, say, Jimi Hendrix completely changed the guitar.”

Jocelyne Benzakin

carte de visite

27 julho, 2010

Oprah Winfrey recebeu o corpo de Ann-Margret na capa da TV Show

Katie Couric CBS news anchor for Watch! magazine

A âncora da CBS Katie Couric apareceu bem mais magra na revista Watch!

Suzana Vieira parecia muitos anos mais jovem em ensaio para a revista Quem

No séc. XIX, logo após o surgimento da fotografia, a produção e venda de cartões de visita (os carte de visite de Disdéri)  popularizou a fotografia entre as camadas mais pobres da sociedade. Como resultado, transformou em prática a simulação de status social, oferecendo a esses personagens menos abastados cenários e figurinos mais elegantes, típicos das classes mais altas. Era por meio de uma espécie de direção de arte que eles conseguiam forjar o status que não tinham na vida real.

Em uma passagem do livro After Photography, Fred Ritchin destaca que, com a supervalorização da imagem, pode ser um sinal de prestígio receber o corpo de uma outra pessoa numa foto. Como se as nossas imperfeições não combinassem e até comprometessem o nosso sucesso.

Ainda em 1989, a apresentadora Oprah Winfrey parecia outra pessoa na capa da TV Guide, e era. Em montagem feita com a cabeça de Oprah e o corpo da atriz Ann-Margret, a entrevistadora apareceu muito mais magra do que na realidade. A manipulação aconteceu sem a permissão de nenhuma das duas mulheres envolvidas e só foi descoberta quando o estilista de Ann-Margret reconheceu seu vestido.

Mais recentemente, Katie Couric, jornalista de destaque do grupo CBS, se viu numa silhueta bem mais longilínea na revista Watch!. A CBS declarou que esse tipo de prática não é apoiado pelo canal e que não deve se repetir no futuro. Já o caso da atriz Suzana Vieira ganhou projeção nacional, quando um ensaio publicado em maio de 2009 mostrou uma Suzana excessivamente photoshopada, num corpo muito mais em forma do que as fotos publicadas em outro veículo permitiam ver.

A busca por prestígio tem dialogado intensamente com a fotografia ao longo de sua história e, talvez agora, com a popularização das técnicas de manipulação de imagem, essa prática, já tão recorrente, tenha chegado ao auge da celebração. Ritchin afirma que estamos diante do desaparecimento do natural, “num mundo em que todo mundo é inteligente, bonito e divertido”, mas, na verdade, um mundo em que as pessoas têm medo de simplesmente ser.

Fotografia e amor: é possível?

29 abril, 2010

Those Days of the Sixties, 1965, Jan Saudek

The Bond of Love No. 1, 1960, Jan Saudek

The Portrait of Ida and Shin, 2001, Sara Saudkova

Kampa (Prague), 2001, Sara Saudkova

Há quem leia a pergunta e já responda de imediato.

Eu passo.
No post inaugural do blog Icônica, Ronaldo Entler abordou uma questão que, de tão presente no senso comum, já nem desperta tanto debate/curiosidade: como a personificação do fotógrafo está vinculada a um personagem complexo, com crises existenciais profundas, instrospectivo e, quase inevitavelmente, “incompetente para os relacionamentos amorosos”. A argumentação de Entler é baseada em alguns personagens fotógrafos que povoam a história do cinema (em BlowUp, Antes da Chuva, A Prova, A Pele, etc.).

Não sei se existe essa incompetência, mesmo porque não sei se uma competência para o amor é possível – em qualquer profissão ou grupo social. Mas identifico a complexidade e a tormenta típica do nicho.
Fotografar é mesmo viver em perigo já que o fotógrafo se coloca constantemente em risco – piegas mas honesto – de apaixonar-se pelo que vê. Pra logo em seguida, desapaixonar-se e prosseguir vivendo desimpedido e livre para amar novamente. E isso é viver em conflito constante, alimentando a contradição entre o frio na barriga provocado por uma boa fotografia e o desapego necessário para a próxima imagem.
O que acho mesmo é que o fotógrafo é das figuras mais egocêntricas possíveis. Fotografa no mundo o que ele é, sua própria pessoa, “seu ego num corpo alheio”, como diz José de Souza Martins. Nesse movimento, ele se reconhece bonito e apaixonante, mas também se reconhece feio, grotesco e assustador. E segue pelo mundo entre extremo encantamento e extrema repulsa.
Talvez, analisando de forma superficial, resida aí a causa de uma imagem tão solitária, cheia de altos e baixos e ciclos, que repelem, atraindo. Pensar o fotógrafo assim é lugar-comum, mas deve partir de um indício de verdade que seja, um conceito possível pela repetição.
Jan Saudek, o fotógrafo tcheco, confessou: “eu fotografo meus amados através do prisma do amor…”. E quem é capaz de negar uma afirmação dessas? Principalmente quando dita por um homem que dividiu com a mulher não só a paixão pela máquina, mas a paixão pelo filho. Em sua vida, a fotógrafa Sara Saudková foi não apenas namorada, mas prossegue “como atual empresária e mãe de seus netos (ela começou um relacionamento com Samuel, filho de Saudek, enquanto ainda viviam juntos)”.
O resultado é um par de trabalhos que confundem amor, erotismo, sofrimento, paixão e que misturam-se um no outro, dialogam, às vezes com agressividade, às vezes no mesmo ritmo, às vezes em silêncio – como num beijo (apaixonado ou não?).
*não sei porque me veio essa preocupação agora, mas deixo claro que, dizer que os dois trabalhos dialogam entre si não é o mesmo que dizer que estão em pé de igualdade. Saudková me comove muito menos, mas nem por isso deixo de reconhecer em seu trabalho os traços marcantes e a personalidade excêntrica de Saudek, linda influência.